sábado, 20 de setembro de 2008

Espólio arqueológico nacional aguarda despejo sem ter nova casa

"Obras do novo Museu dos Coches sem data

Espólio arqueológico nacional aguarda despejo sem ter nova casa

20.09.2008 - 07h20 Ana Machado

A construção do novo Museu dos Coches deveria arrancar este mês. Foi isso que foi avançado na apresentação, a 9 de Julho, do projecto que vai crescer nas antigas Oficinas Gerais de Material do Exército, em Belém, onde actualmente estão guardados os tesouros da arqueologia nacional, o espólio do ex- Instituto Português de Arqueologia. Mas o Ministério da Economia, responsável pela obra, não diz quando arrancarão os trabalhos. E o Ministério da Cultura ainda não sabe onde vai colocar a arqueologia. A hipótese da Cordoaria Nacional surge como provável.

A morada desta autêntica gruta de Ali Babá dos tesouros arqueológicos nacionais fica na Avenida da Índia, nº 136, em Lisboa. É para lá de um enorme portão verde, mesmo em frente à estação da CP de Belém que se concentram, por 12 mil metros quadrados de área, centenas de contentores com os mais importantes achados realizados em território nacional. Tudo começa ali e tudo acaba ali na arqueologia. Mas poucos sabem o que ali se guarda. À espera de ser despejado daquele local, onde vai crescer o futuro Museu dos Coches, este autêntico tesouro continuam à espera de ordem do ministro da Cultura para ser encaixotado rumo a uma nova casa.

Primeiro é preciso conquistar a simpatia do CIPA, o cão de guarda adoptado pelo pessoal do Centro de Investigação em Paleoecologia Humana, que lhe deu o nome. Passa-se então o portão das instalações do antigo Instituto Português. Mas não se imagina o que todo aquele espaço guarda.

Visitado quase em exclusivo por investigadores, os armazéns de depósitos arqueológicos, a biblioteca de arqueologia, a mais importante a nível nacional, e o espólio do Centro Nacional de Arqueologia Náutica (CNAS), estendem-se por vários edifícios dispersos por corredores de terra batida que parecem não terminar. Como se de uma pequena aldeia se tratasse.

Em pleno núcleo histórico de Belém, a escolha para a construção do novo Museu dos Coches, ali vizinho, acabou por recair nesta cobiçada fatia de terra, o que implica mudar de lugar centenas de contentores de material arqueológico, algum de muito delicada conservação, toda a base de dados da Arqueologia Nacional, com os dados sobre os 26 mil sítios arqueológicos registados em todo o território de Portugal continental.

Os terrenos por onde hoje se estende o espólio do extinto Instituto Português de Arqueologia (cuja fusão com o Instituto Português do Património Arquitectónico, IPPAR, deu lugar ao Igespar em 2002), foram comprados ao Exército no início da década de 1990, já a pensar numa nova casa para o muito concorrido Museu dos Coches. Mas, na indefinição sobre o arranque desse projecto, foi o IPA que acabou por descer, em 1998, do Palácio da Ajuda, onde estava instalado, para ocupar aquele lugar.

Arqueólogos preocupados

Jacinta Bugalhão, arqueóloga, esteve já a tratar de embalar algumas das peças do depósito onde se contam mais de 600 contentores de peças arqueológicas. “Ainda não temos ordem para empacotar mas já estou a empacotar porque me preocupa”.

Sacode o pó das mãos antes de explicar o que significa para a arqueologia desligar, por um dia que seja, toda a base de dados da investigação arqueológica nacional: “Todos os dias surgem sítios novos. Se isto pára, a arqueologia pára. Sem sabermos para onde vamos estou a ver isto muito mal parado”, afirma.

É pelos responsáveis da sala de inventário, onde se actualiza a mega base de dados da investigação arqueológica em Portugal, que são recebidos os estudos de impacto das grandes obras públicas, que também obrigam ao levantamento dos locais de interesse. Sofia Gomes, uma das responsáveis pela base de dados tem o dedo precisamente em cima do traçado do futuro comboio de alta velocidade, que aparece no ecrã do computador: “Há um sítio de interesse arqueológico a 32 metros do traçado, no Poceirão”. Desligar a base de dados implica atraso nas obras ou risco de perda de património arqueológico.

Mais extenso, em termos de informação, que esta base de dados, só o arquivo. No edifício do arquivo os corredores a perder de vista pintam-se de amarelo, a cor dos milhares de dossiers onde permanece arquivada toda a informação arqueológica. “Temos um quilómetro e meio de dossiers. O que está no sistema informático em síntese, aqui aparece com toda a informação, o mais completo possível, mapas incluídos”, explica Jacinta Bugalhão.

A informação começou a ser ali arquivada desde os anos 40. “Mas nos últimos 10 anos explodiu”, acrescenta João Mendes, especialista em arqueologia preventiva ( -“tentamos prevenir o aparecimento dos problemas”), que também acompanha a visita. Passando os olhos pelas lombadas aparecem o plano de salvaguarda do Alqueva, o processo de classificação do Vale do Côa... “Usamos estes dossiers todos os dias”, conta. Ali chegam cerca de 60 a 80 processos por dia.

Um dos casos que mais tem preocupado a comunidade de investigadores de arqueologia, quando se fala na mudança de casa, é o da Biblioteca. Trata-se da mais completa de Portugal, com informação procurada por investigadores nacionais e estrangeiros que se ocupam com a arqueologia nacional.

Foi aliás a biblioteca que motivou o lançamento de uma petição on-line, dirigida ao ministro da Cultura onde os subscritores mostravam preocupação com o futuro do espólio de cerca de 55 mil obras. Este espólio foi engrossado quando, em 1999, encerrou em Lisboa a delegação da Biblioteca do Instituto Arqueológico Alemão. Esta cedência foi feita em regime de comodato, o que significa que continua a ser património do Estado alemão que a pode reclamar se, por exemplo, não estiver acessível ao público.

“Estão aqui as obras mais procuradas da Península Ibérica, procuradas por investigadores nacionais e estrangeiros que vêm procurar informação sobre Portugal”, diz António Faria, responsável pela biblioteca, preocupado também com as consequências do parco orçamento disponível para esta área. “A Revista Portuguesa de Arqueologia”, por exemplo, de periodicidade semestral, não é publicada desde o segundo semestre de 2007: “Precisamos de espaço para publicar artigos. Esta revista saiu durante dez anos. Não há dinheiro. É o que nos dizem”.

Achados náuticos em risco

Mergulhando mais nas ruas de terra batida das antigas instalações das oficinais do Exército, Jacinta Bugalhão aponta uma porta metálica que dá acesso a um outro grande armazém. A porta range para dar acesso a um ambiente de filme ao estilo Indiana Jones, acentuado pela arquitectura industrial, com varandins de ferro, que caracterizam o espaço. É a sala da divisão de arqueologia náutica.

Pirogas monóxilas (feitas de um único tronco de árvore) encontradas no rio Lima e datadas com 2300 anos, mergulhadas em enormes tanques para preservar o estado de conservação são as protagonistas de um cenário onde se espalham caixotes com inúmeras peças e peças de artilharia em bronze encontradas ao longo dos anos na costa portuguesa ou apreendidas em feiras quando alguém se preparava para vendê-las sem conhecer o valor do que tinha em mãos.

“Nós temos toda esta linha de costa, o que nos faz um dos países do mundo com maior património náutico e subaquático. As peças aqui preservadas são muito importantes em termos patrimoniais”, frisa Jacinta Bugalhão. “Temos das maiores reservas de arqueologia náutica do mundo. Este sector é um quebra-cabeças. Não se pode parar o tratamento das peças”.

Do imensamente grande – as pirogas monóxilas – para o imensamente pequeno, a visita guiada segue para uma outra sala do complexo, onde Cristina Araújo investiga, à maneira do CSI, através da paleobotânica, o que, por exemplo, os pólens das plantas podem dizer sobre a vida e hábitos das espécies animais. Estamos no CIPA, o Centro de Investigação em Paleoecologia Humana e Arqueociências.

“Aqui trabalhamos em contextos antigos, com mais de 70 mil anos, diz Cristina Araújo que acrescenta que a indefinição sobre uma futura casa está a prejudicar o trabalho: “O laboratório vai perdendo pessoas e capacidade de investigação perante esta indefinição.”

Simon Davis, zoólogo, veio em 1999 do English Heritage, onde trabalhava, para Lisboa. É hoje um dos investigadores do CIPA. Simon revela aquele que é um dos maiores tesouros do centro de investigação, que começou a recolher em 2000. São dezenas de pequenas gavetas de madeira onde estão meticulosamente alinhados milhares de ossinhos que compõem a maior osteoteca do país que representam cerca de 50 espécies de mamíferos e 300 de aves. Todos os ossos dessas espécies estão ali catalogados. “Deve ser a melhor colecção da Península Ibérica.”

“Não podemos mudar isto de um momento para o outro. Talvez sejam necessários dois meses, não sei se estarei a errar”, diz Cristina Araújo, ao mesmo tempo que mostra amostras congeladas, “cores”, de solos, para estudo de pólens, guardados em arcas congeladoras. Não podemos descongelar este material. São milhares de anos de história. É o nosso trabalho que está em causa”.

Ministério da Economia à espera da Cultura para arrancar com obras do novo Museu dos Coches
O Ministério da Economia, responsável pelo arranque das obras do novo Museu dos Coches, faz depender o arranque das obras do novo edifício, da saída do Igespar do espaço das antigas oficinais gerais do Exército. Por isso, dizem, ainda não há data para o arranque da obra. A tutela da cultura, por sua vez, procura uma nova casa para a arqueologia nacional. Luis Chaby Vaz, chefe de gabinete do ministro da Cultura José Pinto Ribeiro, confirmou ao PÚBLICO que a hipótese da Cordoaria, como possível nova casa da arqueologia, está a ser avaliada. “Foi falada a hipótese da Cordoaria. Mas ainda não fechamos negócio com o Ministério da Defesa nem apuramos se se adequa a tudo o que pretendemos. Não queremos mudar para pior”, disse Chaby Vaz. Que adiantou que “o timing será certamente antes do final do ano” e que as negociações estão a ser seguidas pelos dirigentes do Igespar. “ As pessoas estão a ser ouvidas e decerto será sempre uma mudança para melhor. Será um pretexto para melhorar as condições”. A.M."

em: http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1343411

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